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Nelson Cavaquinho

Naquela noite, Nelson Cavaquinho tentara compor. Sentira a inspiração – companhia cada vez mais rara nos últimos tempos – brotar em seu peito. Precisava registrar aquela música. Já não podia confiar na memória. Pediu papel e caneta para a esposa. Esforçou-se ao máximo que pôde, mas tudo o que conseguiu foi fazer alguns rabiscos. A mulher, Durvalina, sentiu um arrepio: até parecia que o marido estava conversando com Deus. Cansado, deitou e adormeceu. Na madrugada do dia 18 de fevereiro de 1986, ele morria, vítima de enfisema pulmonar. Aos 74 anos, sua foz rouca se calava. O compositor agora chamava-se saudade.
Era o fim de uma vida boêmia, passada de bar em bar, em rodas de samba, entre uma e outra dose de cachaça. Também terminava ali a trajetória de em compositor fecundo, criador de músicas que nem sempre tiveram seu valor reconhecido. Morreria uma figura lendária, um artista que numca se preocupou em divulgar sua arte. Para ele, sua música era feita para ser cantada com os amigos, para transmitir suas crenças de vida, as desilusões amorosas, as tristezas e amarguras. Se lhe pagassem por isso, muito melhor. Se não, tudo estaria bem do mesmo jeito.
Primeiro o cavaquinho, que lhe troxera o apelido, depois o vilão. De qualquer maneira, a música tinha sido sua fiel companheira de toda a vida. A única que nunca o traíra, que nunca criticara seu jeito de ser, que não questionara suas decisões. Quando todos o abandonavam, ela estava ali, amante perfeita, consolo ideal. Também na morte ela o acompanhava: talvez em seu último suspiro ainda pudesse ouvir a composição derradeira, aquela que não conseguira escrever.

Quedas de Chorões

Juntamente com a música – tocada aos domingos pelo pai e pelo tio – as constantes mudanças da família estariam entre as lembranças mais antigas de Nelson Cavaquinho. Filho de família pobre, Nelson Antônio da Silva iniciaria sua vida seminômade pelo Rio de Janeiro em 29 de outubro de 1911, data de seu nascimento. Fugindo do aumento de aluguéis, a família primeiro mudaria da rua Matiz e Barros para a Silva Manuel, na Lapa. Depois, para a rua Joaquim Silva, nos Arcos, e daí para uma temporada no subúrbio de Ricardo Albuquerque. Finalmente estabelecida no bairo da Gávea.
O menino ia crescendo solto na rua, entre as peladas, as bolinhas de gude e as perseguições aos balões. Aos sete anos de idade, um acontecimento marcaria para sempre sua vida: a gripe espanhola, que assolou a cidade do Rio de Janeiro. “A gripe pegou todo mundo, em casa nós também ficamos gripados, mas ninguém morreu nessa ocasião. Mas foi terrível: não tinha mais lugar nos cemitérios, os caminhões passavam todos lotados de cadáveres.” Em seguida, os problemas financeiros da família abreviariam sua infância. Nelson deixava a escola no terceiro ano primário, para trabalhar numa fábrica de tecidos e depois como auxiliar de eletricista. Alteração que seria malvista: os estudos não o atraíam, em vez das aulas preferia enganar o irmão e ir visitar os aquários públicos.
Ainda moleque, Nelson entrava em contato com a malandragem carioca, transbordante de poesia e sonoridades. Na Lapa, Nelson ficaria amigo de famosos e famigerados valentes, como Brancura, Edgar e Camisa Preta. Na adolescência, chegaria à Gávea, onde entraria em contato com os chorões e suas músicas. Fascinado com a perícia dos grandes mestres do cavaquinho, ia espiando e aprendendo os truques do instrumento. Perguntava para um, conversava com outro. Sem dinheiro para comprar um cavaquinho, treinava quando conseguia emprestado de alguém.
Os eventos normalmente freqüentados pelo jovem Nelson eram os bailes dos clubes Gravatá, Carioca Musical e Chuveiro de Ouro. Aí conheceria outros músicos decisivos em sua formação, como Edgar Flauta da Gávea, Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e o violonista Juquinha. Deste último, receberia importantes noções de como tocar cavaquinho. Seria nessa época que Nelson adquiriria um costume que viria a se tornar sua marca: tocar apenas com dois dedos.
Mesmo sem um cavaquinho para treinar ou condições de pagar um professor, Nelson demonstrava habilidade natural para o instrumento e não demoraria até que conseguisse “dar uma queda” até mesmo nos velhos tocadores. “Eu tinha uns 16 ou 17 anos e cada vez mais vontade de tocar cavaquinho. Havia um conjunto integrado por juquinha, Mazinho, Filhinho e Eugênio. A principio eles não me levavam muito a sério. Aproveite então o dom que Deus me deu e fiz um choro, Queda. Então toquei pela primeira vez e comecei a ser respeitado como músico. Daí para frente, era sempre chamado para fazer shows. Ganhava cinco mil-réis cada vez que tocava. Trabalhava de ajudante de eletricista, mas enganava meus velhos e ia para a rua Conceição, onde se reuniam os músicos Eduardinho, Romualdo Miranda e Luperce Miranda. Ali ficava feliz em vê-los tocar.” Com pena de ver Nelson tocando tão bem em instrumentos emprestados, Ventura, um jardineiro português, lhe daria de presente o primeiro cavaquinho.

Rondas na Mangueira

Em 1931, Nelson conheceu Alice. Meses depois, arrastado até a delegacia pelo pai da moça, casava-se com ela. Sem emprego, sem inclinação para nada que não fosse a música e repentinamente elevado à categoria de homem sério e com família, Nelson foi socorrido pela família. O pai falsificou sua idade (tinha 20 anos, mas nos documentos passava a ter 21) e arrumou para ele um posto como cavalariano da Polícia Militar.
Se a família achou que a disciplina do quartel mudaria os hábitos boêmios de Nelson, o tempo se encarregaria de mostrar que estavam todos enganados. A sorte se punha a seu lado e transformava os acontecimentos de maneira a, mais uma vez, aproximá-lo da música. Todos os dias, Nelson pegava seu cavalo, Vovô, e subia o morro da Mangueira para a patrulha. Chegando lá, a rotina era sempre a mesma: parar de bar em bar, fazer amizade com os sambistas do lugar, tomar umas e outras.
Nelson ficaria amigo dos sambistas e a Estação Primeira de Mangueira conquistaria para sempre seu coração. Faria amizades com Carlos Cachaça, Zé da Zilda, Carlota.
“Conheci Carlota na quadra da Mangueira. E, no nosso primeiro encontro, teve um caso interessante. Na época, era polícia e estava de ronda pelo morro. Aí, resolvi parar numa tendinha e dexei amarrado na porta o cavalo, e olha, fiquei tanto tempo conversando com o Cartola, que quando saí da birosca, cadê o animal? Tinha sumido. Fiquei apavorado. E resolvi, assim mesmo, voltar para o quartel. Não é que quando chego lá dou de cara com o cavalo na estrebaria? O danado parecia que sorria para mim pela peça que pregou.” Muitas das histórias de Nelson e seu cavalo Vovô acabariam fanzendo parte do folclore do samba. Além do episódio do sumiço, Nelson costumava contar que Vovô conhecia todas as biroscas da Mangueira e era assíduo consumidor de cachaça. “Ele ficava na porta do boteco, batendo com a pata no chão, até que o dono do bar levasse um pouco de pinga para ele.”
Amigo de toda a população do morro, sua patrulha até que era eficiente. Quando encontrava alguma encrenca, na prendia: conversava com os envolvidos e resolvia a questão. O contato com o ambiente da Mangueira fazia com que Nelson mergulhasse cada vez mais no samba. E na boêmia. Continuava a passar dias longe de casa. Faltava ao trabalho e era punido com detenção. “Eu ia tantas vezes em cana que já estava até me acostumando com xadrez. Era tranqüilo, ficava lá compondo, entre as músicas que fiz no xadrez está Entre A Cruz e a Espada.”

Enfim, a Música

Em 1938, antes que fosse expulso da corporação, Nelson conseguiu baixa. Na mesma época, separava-se da mulher. Finalmente estava livre para levar sua vida como bem entendesse, para se dedicar à boêmia e à música. Sem cobranças, nem recriminações. Sem dinheiro, habituou-se a ir à praça Tiradentes vender seus sambas por verdadeiras ninharias. Pouco importava se o exploravam, se suas criações não eram gravadas. Estava compondo, tocando e cantando. Estava feliz.
E assim Nelson Cavaquinho passaria boa parte da sua vida: de bar, praticamente desconhecido. Nos anos 60 seria descoberto pelo grande público, gravaria alguns discos, receberia homenagens por sua contribuição à música brasileira. Nada disso mudaria seu jeito simples de ser, sua ingenuidade e seus prazeres prosaicos.
Na década de 50, trocou o cavaquinho pelo violão. “Achava o instrumento muito pequeno.” Mas não deixou a maneira de trocar com o ppolegar e o indicador que sempre impressionou instrumentistas como Paulinho da Viola, Turíbio Santos e Egberto Gismonti. Como compositor, notabilizou-se pela melancolia de sua poesia. E pela constância da morte em sua temática. “ Sou um homem que muito perto da fatalidade. Minhas músicas, por isso, falam sempre em morte e em Deus, não faltando os amores fracassados.”
Com repertório de mais de 600 composições (a maioria das inéditas ou esquecidas, pois dificilmente o músico as escrevia, preferindo guardá-las na memória), Nelson Cavaquinho criava de madrugada, nas mesas dos bares, com o violão e um copo de cerveja ou cachaça. “Nunca fiz samba por encomenda, por isso jamais vou compor um samba-enredo. Acho horrível você ter de fazer aqueles lá-lá-lá e oba-oba obrigatórios na linha melódica das escolas de samba. Faço músicas para tirar as coisas de dentro do coração. E foi assim desde o dia em que fiz meu primeiro samba.”
Aos poucos o menestrel das ruas foi envelhecendo. Os cabelos tornaram-se brancos, as rugas ficaram mais profundas. Com medo de ser problemas de saúde, parou de beber e de fumar. Já não mais varava as noites em claro, não desaparecia por dias seguidos. Mas continuava com o violão. Todos os dias, abraçava-o carinhosamente, com seu estranho hábito de tocá-lo quase na vertical. As composições foram rareando, no entanto, persistiram até o fim. Eram o sentido de uma poesia. Sua saga, seus amores, seus fracassos foram registrados em versos e melodias. Tornaram-se imortais. Assim como seu criador.
Nelson Cavaquinho nasceu com a música nas veias. Cresceu entre a musicalidade do pai, Brás Antonio da Silva, tocador de tuba na Polícia Militar, e o violino do tio Elvino. Nas tardes de domingo, a família se reunia, o tio tocava, todos cantavam e, ainda menino, Nelson tentava acompanhá-lo num instrumento de fabricação caseira: uma caixa de charutos com alguns arames esticados. “Aí é que começou a nascer essa parte da música para mim”, recordava o compositor, com saudades.
Apesar das dificuldades financeiras, Nelson guardaria boas lembranças dos cuidados do pai e dos carinhos da mãe, Maria Paula da Silva. “Minha mãe era lavadeira no Convento de Santa Teresa. Eu me lembro de que gostava muito da comida do convento que ela muitas vezes trazia numa lata para a gente. Éramos muito irmãos: Iracema, a mais velha, Arnaldo, João, eu, Atalírio e José.”
Mesmo sem dinheiro ou profissão definida – e nem muita inclinação para o trabalho – aos 20 anos, Nelson casava-se com Alice Ferreira Neves. “Meu casamento foi na política e eu estava numa situação tal que a minha madrinha me deu um sabonete de presente pra eu poder tomar banho. Eu não tinha nada, nada.” A partir daí, sua vida de boêmio, se fuincionava como i motor de sua criação, também seria motivo de muitos desentendimentos familiares.
Nem a condição de casado mudaria alguns de seus hábitos. Os filhos iam nascendo (seriam quatro ao todo), e Nelson continuava a passar dias seguidos longe de casa, voltando apenas quando o dinheiro acabava. As brigas eram constantes, assim como os cavaquinhos e violões quebrados. Sem poder conviver com o marido, Alice se separaria de Nelson.
Separado de Alice, Nelson também se afastaria dos filhos. Mergulhado de vez na boêmia, teria vários relacionamentos, a maioria terminando antes mesmo de começar. Até que, já com mais de 50 anos de idade, conheceria Durvalina, trinta anos mais moça do que ele, mãe de Márcia (que o compositor passaria a criar) e sua companheira pelo resto da vida. “Ela sabe me agüentar na velhice. Teve uma mulher certa vez que veio aqui para a minha casa e quis empenhar tudo. Fiquei assustado. Quando essa veio para cá, vendeu um barraco que tinha em Manguinhos e ainda botou um milhão na minha mão. Por isso, tudo o que está aqui vai ficar para ela.”

A Boêmia da Canção

Ele já ultrapassara a barreira dos 70 anos e as homenagens paravam de acontecer. Aonde quer que fosse, era cercado por pessoas que conheciam sua música e aplaudiam seu talento. Feliz com a situação – afinal, não era ele autor dos versos “Se alguém quiser fazer por mim, / Que faça agora / Me dê as flores da vida / O carinho, a mão amiga”? – Nelson Cavaquinho não recusava nenhum convite, nenhum espetáculo. Tão satisfeito em cantar para a platéia que o ouvia nas salas de espetáculos, quanto estivera ao se apresentar no Zicartola ou na mesa de um bar. Não fazia diferença. O que importava era mostrar sua arte, mostrar as canções que falavam tanto de si, de seus sofrimentos e desilusões.
Sempre fora assim. Desde que decidira viver da música, compondo e vendendo seus sambas na praça Tiradentes. O sucesso não lhe interessava. Talvez por esse motivo, Nelson Cavaquinho tenha permanecido tanto tempo longe do grande público. Marginal do mundo artístico durante décadas, a despeito do seu reconhecido talento e de suas composições, que sempre misturaram na dose certa a cadência do morro e da cidade.
Pois quando Nelson Cavaquinho saía da Polícia Militar surgia como compositor com pretenções de sobreviver de sua arte, o cenário musical brasileiro sofria transformações. No final da década de 30, o rádio já estava consolidado como principal veículo de comunicação em massa. As programações estavam definidas, assim como os elencos das emissoras. Emplacar um gravação nas paradas de sucesso das principais estações era garantia de aumento nas vendas dos discos. Com o meio profissionalizado, a competição tornava-se cruel e conseguir um lugar ao sol era cada vez mais difícil.
Em 1943, o compositor teria sua primeira música gravada: Alcides Gerades, então um cantor iniciante, lançava Não Faça Vontade A Ela, num 78 rotações. Nos anos seguintes, Ciro Monteiro também gravaria algumas músicas de Nelson, mas sem grande êxito. Por que o compositor não tinha espaço para suas criações? Por que cantores não se interessavam por suas músicas? Um dos principais entraves encontrados pelo músico era sua inabilidade em lidar com o meio artístico.
As mudanças na estrutura das rádios eram complementadas por inovações na maneira de divulgação das músicas. Já ia longe a época em que os locutores diziam a famosa frase “encontra-se aqui em nossos estúdios”, geralmente para apresentar um intérprete que chegava à emissora para cantar a música preferida de seu público. A crescente influência americana – resultando da política de boa-vizinhança do período pré-Segunda Guerra Mundial – transformava de vem a música num produto a ser comercializado. As rádios não tocavam mais as composições preferidas do público mas, numa inversão de valores, aquelas que queriam levar ao sucesso.
Nesse contexto, para que uma música interessasse ao programador de uma emissora, era necessário que o intérprete ou o compositor se empenhasse em árduo trabalho de convencimento: era o início da caitituagem, expediente utilizado até os dias de hoje. No entanto, Nelson não era homem de se preocupar com esse tipo de coisa. Queria fazer sua arte, com sossego. Não levava jeito para correr atrás de divulgação. Tampouco tinha jeito para freqüentar os mesmos lugares da nata musical da época, como o Café Nice. Portanto, também não podia tornar-se amigo dos intérpretes da fama.
Afastado dos meios onde as pessoas que poderiam interessar-se por sua música se encontravam, Nelson mantinha seus sambas para os amigos, cantava-os em cada bar que parava, sempre disposto a uma conversinha ou mais musiquinha. Vivia de alguns biscates e da venda de suas composições. Um de seus parceiros, Mílton Amaral, também compositor e boêmio, costumava contar que, certa madrugada, fizeram um samba juntos. Alguns dias depois, quando foi à editora para assinar o contrato, qual não seria a surpresa ao constatar que era o 16° co-autor: Nelson já havia vendido a mesma música quatorze vezes.

Descobrimento no Zicartola

Nelson Cavaquinho era amigo de Cartola desde a época em que patrulhava o morro da Mangueira. No entanto, a partir de 1961, começaria a freqüentar com mais regularidade a casa do mangueirense e de sua mulher, Dona Zica. Estimuladas por cervejas e deliciosos quitutes, as reuniões atravessavam madrugadas e geravam novas composições. Aos poucos a casa da rua dos Andradas foi ficando pequena para tantos amigos. Surgia então, o restaurante Zicartola, na rua da Carioca.
No Zicartola, Nelson se esquecia da vida e dos problemas financeiros nas rodas de samba, em companhia de Zé Keti, Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do Salgueiro, Oscar Bigode, Elton Medeiros, entre outros. O restaurante logo se tornaria reduto da música popular, indepandente da linha ou temática dos compositores. Animado com o clima amistoso do local, Nelson começaria a se apresentar para os clientes amigos do Cartola.
Para sua sorte, o destaque alcançado no Zicartola coincidia com um período muito favorável para sua música. Viviam-se tempos de forte organização política, especialmente dos movimentos estudantis. E o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) empenhava-se em promover a revitalização das raízes da MPB, com apresentações dos velhos sambistas que aos poucos iam sendo redescobertos.
Ao mesmo tempo, a bossa nova passava por uma transformação e seus mais representativos integrantes voltavam sua atenção para o samba de morro, música por eles considerada a legítima brasileira. Em novembro de 1962, cada vez mais engajado no CPC, Carlos Lyra declarava: “O único caminho é o nacionalismo. Nacionalismo em música não é bairrismo”. Lyra seria um dos primeiros a organizar encontros em sua casa para reunir os velhos sambistas. A próxima seria Nara Leão: em 1965, a musa da bossa nova lançava um disco com composições de Cartola, Zé Keti e Nelson Cavaquinho.
O comportamento desligado de Nelson Cavaquinho ganhava fama entre os bossa-novistas. E o folclore em torno de seu nome aumentava. Corria uma história de que, certa noite, após tocar com Tom Jobim até o amanhecer, o sambista teria combinado um show conjunto. Ao saber da idéia, o produtor Jorge Coutinho quis acertar maiores detalhes. E Nelson responderia, espantado: “Tom?! Que tom? Dó maior?”

Um Grande do Samba

A notoriedade finalmente alcançava o compositor. De um momento para outro, sem que fizesse qualquer coisa diferente da que sempre fizera, Nelson Cavaquinho via sua obra ser valorizada não só pelos companheiros de boêmia, mas também pela Zona Sul intelectualizada. Era o ano de 1970 e essa “descoberta” lhe proporcionava a gravação do primeiro disco como cantor exclusivo, lançado pela gravadora Castelinho. Esse disco sairia prematuramente do mercado, após a falência da gravadora. Quatro anos antes, a cantora alagoana Telma Soares havia lançado um disco inteiramente dedicado às composições de Nelson, com produção de Sérgio Porto e arranjos de Radamés Gnatalli.
Depois disso, os convites para espetáculos aumentariam a cada dia. Em novembro de 1971, passaria a apresentar-se por muitos meses, todas as segundas-feiras, num evento intitulado Noitada de Samba. Sempre com o teatro cheio. No ano seguinte, era convidado para gravar mais um LP, desta vez pela RCA. Durante as gravações, realizadas em São Paulo, Nelson mostrava que a fama não o mudara: no segundo samba conseguia transformar o estúdio de gravação em autêntica roda de samba, aproveitando a ocasião para celebrar o encontro com a velha guarda paulista. E também não resistia à tentação de oferecer o resultado de seu trabalho para todos os amigos, alheio ao fato de que o disco deveria ser comercializado. Mais uma vez, para ele música era arte e prazer.
O terceiro LP de sua carreira viria em 1974, aos 63 anos. Era Nelson Cavaquinho, lançado pela Odeon, no qual o compositor aparecia pela primeira vez em público tocando o instrumento que lhe dera o apelido. Esse trabalho representava também a primeira gravação de Guilherme de Brito – parceiro constante de Nelson desde a década de 50 –, em dueto com o amigo em suas mais importantes composições. A Flor e O Espinho, Se Eu Sorrir, Quando Eu Me Chamar Saudade e Pranto de Poeta. Novamente com Guilherme, em 1977, Nelson participava do disco Quatro Grandes do Samba, ao lado ainda de Cadeia e Elton Medeiros.

O Descanso do Menestrel

Em 1980, Nelson Cavaquinho completava 69 anos. No entanto, seus amigos, olhando a data estampada em seus documentos (28 de outubro de 1910), estavam felizes em organizar os festejos de seus 70 anos. Sem poder beber (parara a algum tempo, por recomendações médicas) e meio sem jeito de explicar por que tinha, na verdade, um ano a menos do que constava em seus documentos, Nelson escaparia de todas as homenagens.
Mas não faria o mesmo no ano seguinte. Aposentado, de bem com a vida, recebendo regularmente algum dinheiro por conta dos direitos autorais de suas músicas, Nelson queria festejar o término de mais uma década de vida. “Também agora a situação financeira está melhorando. Antes, compositor era marginal. Ai da moça de família que se metesse com um tipo assim. Hoje tudo mudou. Tenho duas aposentadorias, uma como compositor, outra dada pelo governo. Mas houve um tempo em que ficava cantando, esperando que me dessem dinheiro para a condução. Defendia a vida com dificuldade.”
Um pouco mais gordo e aparentemente ótima saúde, Nelson aproveitava as comemorações pelos 70 anos para prever a chegada de mais composições com o parceiro Guilherme de Brito. “Sei que, no momento, quatro ou cindo músicas minhas por ano dão perfeitamente. Agora, não preciso trabalhar tanto e, na verdade, desde que parei com a bebida, tenho tido certa dificuldade para compor. Antigamente, tinha época que passava dias seguidos bebendo em um bar, sem ir para casa, aí dava vontade de fazer música a toda hora. E olha que vivia nessa batida desde o final da década de 30.” O menestrel tinha seu merecido descanso. Tranquilidade que podia ser quebrada a qualquer hora, para uma apresentação, ou para desfilar na comissão de frente da Mangueira.
No Carnaval de 1986, Nelson não desfilou. Já não se sentia tão bem quanto antes, vitima do que ele mesmo diagnosticava como “uma falta crônica de ar”. Cansava-se com facilidade. Esquecia-se das coisas. Já não passeava por aí, cantando sua liberdade e seus amores. Seus receios e suas dores.
“Em Mangueira, / Quando morre um poeta, todos choram. / Vivo tranquilo em Mangueira, / Porque sei que alguém há de chorar / Quando eu morrer / Em Mangueira, o pranto é tão diferente, / É um pranto sem lenço, que alegra a gente. / Hei de ter alguém para chorar por mim / Através de um pandeiro e um tamborim”, dizia uma de suas composições, Pranto do Poeta. Pois, poucos dias após os festejos de Momo, o morro chorou: a quadra da Estação Primeira de Mangueira cobria-se de luto pela morte de um de seus filhos queridos. No caixão envernizado, o compositor, coberto de flores, o rosto à mostra num sorriso tranquilo. E a bandeira da Verde-Rosa, na homenagem derradeira, símbolo da lágrima contida.

Permutas Musicais

Nas épocas difíceis, Nelson Cavaquinho não hesitava em vender a parceria de uma de suas músicas em troca de algum dinheiro para pagar dívidas. Por isso, quase todas as suas criações foram registradas por mais alguém, embora a maioria delas tenha sido feita somente por ele. Quem são co-autores reais? Impossível saber. O próprio Nelson não gostava de comentar o assunto. “Bem, era eu quem fazia tudo, mas na ocasião não pensei nada disso, como é que posso reclamar agora? Eles me auxiliaram muito, acho chato falar nisso, não estou reclamando, apenas dizendo o que é.”
Apesar disso, algumas histórias sobre essas vendas de parcerias feitas por Nelson Cavaquinho viriam a tornar-se lendárias. Cartola contumava contar, por exemplo, que Nelson vendeu uma música que os dois teriam composto juntos. E que, quando foi tirar satisfações, o mesmo teria explicado: “Cobrei só a metade, vendi só a minha parte”. O episódio era confirmado por Nelson, que acrescentava que a composição nunca tinha sido gravada. “Naquela época, tod mundo fazia isto e tem muita gente que se fez na vida comprando músicas dos outros. Eu era polícia e ganhava mal, o que podia fazer? Um dia eu estava num boteco na esquina da Riachuelo com a Frei Caneca, quando um sujeito me ofereceu comprar uma parceria. Eu não tinha nada pronto, não me lembrava e fiz um improviso em cima dessa minha música com Cartola. Pedi cinco mil-réis, que dava pra comer uma semana. O sujeito veio me procurar no dia seguinte: tinha esquecido a melodia. Eu disse que eu também e ficou por isso mesmo.”
Se esse música nunca seria gravada, o mesmo aconteceria com a outra parceria dos dois: Devia Ser Condenada, lançada na voz do próprio Nelson, apenas em 1985, no disco As Rosas Em Vida.
Uma olhada na lista dos parceiros de Nelson Cavaquinho pode revelar dados curiosos. Como o nome do quitandeiro que lhe vendia fiado ou o dono de um bar onde devia dinheiro. Um de seus mais constantes “parceiros”, no entanto, é César Brasil, proprietário de um velho hotel no centro do Rio de Janeiro e incapaz de compor um verso ou de tocar uma nota em qualquer instrumento. Como o destino fez de Nelson Cavaquinho um de seus hóspedes, também fez com que César Brasil entrasse para a história da música popular brasileira como co-autor de um dos mais belos sambas do violonista: Degraus da Vida. Parceria que lhe custou cerca de cem mil-réis.
Algumas das poucas parcerias reais de Nelson Cavaquinho seriam feitas com Mílton Amaral, Jair do Cavaquinho e Zé Keti. Com o último, comporia a música Meu Pecado. Infelizmente, para não contrariar a legislação de direito autoral vigente na época, apenas o nome de Zé Keti podia aparecer nos discos.

Intérpretes

Para Nelson Cavaquinho, a principal função de sua arte era a diversão e o prazer que ela podia proporcionar. Nunca teve jeito para batalhar a gravação de suas músicas. Por esse motivo, até ser “descoberto” no Zicartola, já nos anos 60, raros seriam os intérpretes a lançarem alguma composição de sua autoria. Apesar disso, nos anos 40, o nome do compositor (que na época assinava como N. Silva) começaria a aparecer em alguns discos de Ciro Monteiro. Em 1943, o cantor gravaria Apresenta-me Aquela Mulher e Não Te Dói A Consciência, em 1945, Aquele Bilhetinho e, no ano seguinte, Rugas.
E Ciro Monteiro não foi o primeiro. No final dos nos 30, Não Faça Vontade A Ela era gravada em edição particular pelo Alcides Gerardi. Por falta de divulgação, essa gravação chegaria ao rádio apenas em 1943, alcançando algum sucesso. No final da década de 40, Roberto Silva lançava o samba Notícia. Em 1961, esse mesmo cantor gravaria Degraus da Vida.
Graças à onda de revitalização do samba, em 1965, Nara Leão lançava Pranto de Poeta. E, na década de 70, Nelson Cavaquinho veria suas músicas gravadas por intérpretes de sucesso. Paulinho da Viola – admirador confesso do velho sambista – lançava Duas Horas da Manhã, e Chico Buarque, Cuidado Com A Outra. Clara Nunes gravaria Minha Festa, Tenha Paciência, o Bem e o Mal e Palhaço. Esta última composição já havia sido gravada por Dalva de Oliveira, em 1953.
Ainda na época em que Nelson frequentava o Zicartola, sempre que possível, uma mocinha ia assistir aos seus espetáculos: Beth Carvalho. Os dois seriam apresentados num bar da rua Lavradio, daqueles que Nelson passava horas, sempre com o violão a postos. Pois naquele dia ele conheceu a jovem fã e ficou muito impressionado ao perceber que ela conhecia muitoas de suas músicas de com “Até as menos divulgadas, coisa que nem gosta mesmo”, orgulhava-se a cantora. Nos anos 70, Beth seria uma das cantoras a emprestar sua voz para as criações do sambista, em Quero Alegria e Quando Eu Me Chamar Saudade.
Uma das primeiras composições de Nelson Cavaquinho, o choro Nair, seria gravada por Altamiro Carrilho e sua banda. Essa é uma das raras músicas em que o nome do compositor aparece sozinho. Outros intérpretes a lançarem criações de Nelson seriam Alcione, Miúcha, Telma Soares e Nelson Gonçalves.
Nelson Cavaquinho sempre registrou suas músicas com a co-autoria de muitas pessoas. No entanto, entre as centenas de nomes que podem figurar nessa lista, ninguém merece mais o título de parceiro do que Guilherme de Brito. Um mecânico de máquinas de calcular da Casa Edison, com quem Nelson criou as mais importantes composições de seu repertório, como A Flor e o Espinho, Folhas Secas, Pranto de Poeta, Degraus da Vida, Cinzas e Pecado.
“Eu levei três anos namorando a figura dele, ante que nos fizéssemos parceiros. Foi por volta de 50 ou 51, na praça Tiradentes de seus melhores tempos boêmios”, recordava Guilherme. “Como sou muito calado, ficava só olhando o Nelson, ouvindo-o e respeitando suas criações.” Todas as noites, quando voltava da Casa Edison, Guilherme encontrava Nelson nos bares, bebendo e cantando, rodeado pelos amigos. De manhã, saía para o trabalho, e o boêmio compositor ainda estava lá, festejando com os companheiros mais resistentes. Tornaram-se amigos.
Com Guilherme, Nelson Cavaquinho estabeleceria uma parceria de raro lirismo. Mas um lirismo amargo voltado paras as pequenas tragédias do cotidiano e para a efermidade da vida. Talvez o exemplo mais bem acabado desse estilo seja A Flor e o Espinho, composta durante uma madrugada, no meio de uma conversa em que Nelson contava seus problemas sentimentais para o amigo. Ouvindo atento e sensibilidade aguçada, Guilherme criaria os versos antológicos: “Tire seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor”.
Embora só tenha se tornado conhecido após a parceria com Nelson Guilherme de Brito já compunha há tempos. Só que, pouco divulgadas, suas criações não conseguiam gravação. Ademilde Fonseca e Roberto Silva chegaram a cantar algumas em programas de auditório, mas não em disco. “Acho que não gravavam porque não existia uma parte promocional das gravadoras. Quem fazia a promoção era o próprio compositor, que saía plas rádios fazendo caitituagem”, especulava Guilherme.
Por isso, sua primeira gravação aconteceria somente em 1954, quando Augusto Calheiros lançou um 78 rotações, com Meu Dilema e Audiência, ambas de sua autoria. “Quer dizer, demorei para começar, mas comecei bonito.”